segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A NOSSA CRIANÇA INTERIOR

Falar da nossa Criança Interior é o mesmo que falarmos de nós. João dos Santos disse-nos que temos que preservar a nossa criança interior.
Um momento para a crítica e lamechice – porque não se fala mais de João dos Santos? Porque é que tanta e tanta gente, nomeadamente educadores, pedagogos, psicólogos, não conhecem João dos Santos?
É que, caramba, o homem disse tudo. Tudo o mais que continuam a dizer, são acrescentos, muito deles repetitivos e monocórdicos, do essencial que já foi dito. (não me vou alongar mais porque fica prometida uma visita guiada por estas páginas a J.S.)
Terminada a lamechice, passamos ao que importa:
Olhamos para nós, adultos, seres crescidos nas nossas gabardinas e fatos completos, maquilhagem e sapatos de salto XXL, na nossa roupa que teimamos que seja de marca (que nos poderá acontecer se ousamos que não seja? Excomungados? Na melhor das hipóteses!!!) e, para além da casa a que chamaremos nossa daqui a meio século e do carro comprido e com televisão, há a nossa criança interior. Paremos aqui, por favor!
- A nossa Criança Interior? Quem é ela?
Pois é dela que iremos falar nos próximos tempos. Páginas e páginas de histórias com contornos mirabolantes, próprios da nossa infância e daquela fase em que tudo é possível. Será que só para alguns? É o que vamos ver.
Descobri a minha criança interior quando nasci. No dia em que chorei para o mundo nasceu a minha criança interior. Olhada por mãe e pai, avô e avó, irmão e tias e primas. Estou a falar do meu caso.
Quando me olharam, senti o amor que me tinham, senti-o bem cá dentro e, no meio de sorrisos e brincadeiras, de toca aqui e toca acolá, fui gostando de cá estar. Amada e acarinhada por todos, protegida a todo o momento, comecei a andar – um pouco tarde comparando com as outras companheiras de idade – tive o privilégio de só sentir a separação parental na entrada para a escola primária. Não me peçam para emendar por primeiro ciclo porque na altura era o nome que lhe dávamos e não vou actualizar nada só para parecer moderna e dentro das designações actuais. A minha professora primária – não vou falar dela aqui, mas deu-me um gozo tão grande ser actual com o meu tempo que, não resisti.
Como tal, vivi o meu jardim-de-infância na rua.
 Brincávamos com as bonecas, às casinhas, às mercearias com compras e vendas tão actuais que, qualquer economista se nos tivesse detectado fazia logo ali um contrato para o futuro com as nossas mães; fizemos jogos de todos os géneros, tanto dentro de casa como no exterior, tanto de grande grupo como com dois ou três; a massa de modelar com a lama em dias de chuva e o jogo do espeta permitia-nos ser os grandes conquistadores e conhecedores de um mundo ainda distante. Até tínhamos programas de tutoria com as crianças mais novas, nos quadros de giz a ensinar a fazer as letras e em actividades de arte dramática nas inúmeras peças que inventávamos, com uma dose de improviso que resultava sempre – gostava de fazer de palhaço, personagem que persisti em manter até bastante tarde, apesar da falta de jeito. Originava gargalhadas mais pelos movimentos do que pelo que dizia. Sempre fui tímida mas tinha os meus momentos de exteriorização simplesmente com a ajuda de uma máscara ou de umas rabiscadelas na cara.
Até comemorávamos os dias festivos em que o Carnaval e o Santo António eram os preferidos. Já com 10, 11 anos organizávamos tudo – pedíamos um tostãozinho para o santo tão querido, comprámos tudo o que era necessário para umas sandes, uns sumos, alguns doces e, não podia faltar a famosa fogueira. Meu Deus, vou dedicar um momento especial à fogueira : com a ajuda dos mais velhos e dos avós e dos pais, íamos buscar os ramos de árvores caídas, paus secos e muitos e muitos restos de oliveiras da nossa serra. Saltar a fogueira? Para mim, uma verdadeira aventura. Tinha medo, sabem?! Muito medo. Aquilo podia queimar e ardia muito e muito. Mas, pensam que ficava parada? Sem saltar? Oh, claro que não. Lá ia eu, começava pela parte mais pequena da fogueira e, como via que conseguia e afinal não me queimava, ia aumentando para a área mais alta. O impulso que tinha que dar, as labaredas do fogo e os estalidos da madeira que fazia arrepiar, o cheiro a fumo na roupa e no corpo que o banho tirava mas que, ainda hoje o tenho dentro de mim e, quando ia para casa depois da minha mãe me chamar, ficava aquela sensação única de ter sido capaz. Uma vez fui apanhada pela minha mãe nestes saltos mais altos e mais perigosos aos olhos dos adultos. Que tristeza! Tive que ir para casa e ver o resto dos saltos dos meus amigos pelas grades da minha varanda. Ainda bem que dava para ver do meu quarto, porque assim continuei a saltar sem ninguém saber.
No Carnaval, as mães e as avós ajudavam nas roupas e vestíamo-nos de uma personagem que poucos conhecem que era os “matrafões”. Claro que dá erro no computador porque nenhum Windows ou vista sabe do que estou a falar. Estes bonecos apareciam depois de vestirmos umas roupas dos adultos bastante largas, com almofadas à volta da cintura, gravata a condizer, cara tapada com um lençol recortado para olhos, nariz e boca, pintados com bigodes e rosetas vermelhuscas, e uma mala repleta das mais variadas brincadeiras de Carnaval – bisnagas, papelinhos, instrumentos para desassossegar a mais tranquila das velhotas com quem íamos brincar – “É Carnaval ninguém leva a mal!” E, é verdade, ninguém levava. Os matrafões eram sempre dois ou três e o resto da miudagem acompanhava-nos na perseguição de porta a porta, conhecidos e não conhecidos. O difícil era que nos ofereciam de comer e não podíamos porque causa da cara tapada. Perdemos belos petiscos!
Uma vez fizemos uma deliciosa festa do pijama, sempre de “matrafão” com a cara tapada em direcção ao baile do clube da terra e foi um sucesso tantas danças e redanças com uns e com outros sem parar. O ponto alto nestas mascaradelas foi o Casamento – todos vestidos a rigor, a noiva grávida como convém nestes acontecimentos de brincadeira e eu que emprestei à noiva o vestido de casamento da minha mãe e nunca mais ninguém o viu. Perdi a hipótese de repetir a façanha no ano seguinte.
Quem tomava conta de nós? Ninguém e toda a gente. Cresci numa praceta sem saída de carros, só de escadas. Explico isto porque nas brincadeiras das escondidas, podíamos dar a volta aos prédios e dificilmente nos encontravam. Em todos estes momentos, os adultos estavam lá, à janela, sentados nas portas mas, não estavam. Falavam das suas coisas de adultos, entretidos nas suas realidades e nós éramos livres. A verdade é mesmo esta – livres. Que bom que é ser criança e ser livre. Com uma vigilância responsabilizada, consciente mas em que os momentos eram só nossos. Muito nossos. Havia a hora de chegar para brincar – Mãe, posso ir para a rua? Pai, eles já lá estão e eu não quero comer mais, vá lá, por favor, deixa-me ir?
Nunca ninguém foi de ambulância para o hospital, nada de grave, só as partidelas de braços e feridas normais para centro de saúde. Eu, como “Maria rapaz” que era, fui muitas vezes ao Centro de saúde, chamava-se Caixa, fazer pensos das minhas feridas que demoravam a sarar por serem várias. Ia sozinha, era bastante perto e a enfermeira já me conhecia – era cliente fiel.
Corríamos, saltávamos, pulávamos. Jogávamos a tudo o que era jogo – futebol, o mata, o espeta, sirumba, raquetes, macaca, países, hóquei, ténis, ping-pong – improvisávamos o que tínhamos com o que não tínhamos mas passávamos a ter. Carrinhos de rolamentos, bicicletas para dois e às vezes três, skates; maratonas de monopólio, mikado, quatro em linha; baptizados das bonecas com tudo de direito e caminhadas à serra para apanhar a espiga, mas aí na companhia de um adulto porque era o mundo lá fora, muito longe, depois dos prédios da rua de baixo.
No tempo da série – “Os Pequenos Vagabundo” – as aventuras apareciam diariamente para as vivermos e fantasiarmos muito do que víamos e líamos nos livros dos Sete e dos Cinco. Não havia grutas para explorar mas os canos da água com passagens subterrâneas faziam o efeito desejado. Só me ocorre dizer – Momentos Únicos! Sem dúvida!
E, a nossa Criança Interior?
Á parte todas estas brincadeiras, havia a escola, havia a vida em casa com os nossos familiares e, cada um de nós vivia a sua realidade. Tínhamos um ponto comum – crescemos também na Rua. Uns com os outros. Umas com as outras. Com os mais novos. Com os mais velhos. Dois anos de diferença uns dos outros era uma distância enorme.
A nossa Criança Interior formou-se com tudo isto. Pela forma como vivíamos os nossos medos, como nos dávamos uns com os outros, o respeito à Natureza, aos nossos amigos e amigas, aos nossos familiares. Como nos olhavam e como nos amavam. Ou melhor – com que olhos nos olhavam, nos amavam, se riam e choravam… Como vivíamos com o que nos acontecia, o que inventávamos, o que queríamos fazer.
Esta criança que vive em cada um de nós, que mora em nós, que está sempre connosco é muito do que nós somos.
Estamos mais altos, mais gorditos ou magritos, mas a nossa criança interior continua igual. Nós crescemos mas ela está lá – intacta. Toda ela repleta do que vivemos, de bom, de menos bom, de amores e desamores das figuras parentais (quaisquer que tenham sido), com carências e excessos, com equilíbrios, com reservas e sem reservas, com menos ou mais frustrações, com pouco ou muito amor para dar – tudo, mas mesmo tudo faz parte desta nossa Criança interior. Digo nossa, não porque seja múltipla mas porque é só nossa e de mais ninguém. Unicamente nossa!!!
Hoje, aqui e agora, os adultos que somos, têm que se lembrar da sua criança interior. Olhar para ela, percebê-la, falar dela. Este regressar à essência de cada um é uma viagem demorada. Levem lanche, não se mascarem de matrafão para o poderem saborear e, para resultar melhor, façam a viagem acompanhados. Sabem porquê? Porque com uma companhia especializada, os olhares são mais atentos e o lanche será partilhado.
BEM-HAJAM!
Até Breve!
Célia Gandres       
Psicóloga Educacional 

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